Uma página precisa ser aberta no contexto do debate acerca da Comissão da Verdade sob pena de mantermos uma visão parcial dos acontecimentos que envolveram nossos anos-de-chumbo, particularmente no Araguaia: o tratamento dado ao soldado brasileiro.
Aqui não falo de Bandeiras ou Moogs, Licíos ou Curiós, todos oficiais que atuaram como bestas-feras contra brasileiros, que na paisagem da invasão militar às matas do Pará sabemos com rigor documental terem agido com violência desmedida contra camponeses e guerrilheiros. Só não sabemos e precisamos saber é como os mandatários da caserna, em tempos de guerrilha na Amazônia, tratavam o mais modesto e popular de seus elementos, o próprio soldado. O soldado que é a razão de ser de qualquer Exército do mundo, da antiguidade até os dias atuais.
Faço esse aparte porque tudo pode faltar a uma força militar em combate, menos o soldado. Poderia haver, na Roma antiga, mil espadas, mas se não houvesse mil braços pretorianos a empunhá-las o contencioso estava decidido para a força oponente. Assim foi nos tempos de Júlio César e assim o é mesmo com as mais profissionais gendarmerias do século XXI.
O fato é que o grosso dos soldados que serviram o Exército para combater as Forças Guerrilheiras do Araguaia fora recrutada na própria região conflagrada.
Muitos deles tateavam o inicio do ciclo da vida adulta. Vinham das currutelas e grotas, muitos moravam em castanhais e mal sabiam escrever o nome, eram filhos das populações tradicionais ou de retirantes. Todos, sem exceção, filhos da tragédia brasileira, alargada pela visão de que os pobres eram um problema para a segurança nacional.
Contra estes meninos ouso dizer que os lobos bem-graduados transformaram-nos em seguras cobaias e promoveram um pérfido laboratório. Os métodos empregados contra camponeses e guerrilheiros foram cientificamente utilizados pelos “Doutores” (quem conhece a linguagem da repressão política sabe do que estou falando) junto aos recrutas.
Vamos a exemplos: alguém aí sabe o que é o Pau-do-Capitão? O Pau-do-Capitão é a versão recruta zero para a Cadeira-do-Dragão. O tal instrumento de tortura fora largamente utilizado contra os moços sob o sol escaldante da Amazônia matando os sonhos de servir a pátria. Alías, não apenas ao nobre sonho de defender com fervor seu país, mas qualquer outro sonho. Há ex-soldados, confesso, que não sonham há mais de trinta e cinco anos não porque torturaram, mas porque foram torturados.
Um caso diz respeito a um soldado que levava e trazia um preso para a sessão de tortura no 52 BIS em Marabá, em 1974. Durante dez dias os dois iam e vinham silenciosos, jamais trocaram uma palavra ou olhares. Em ambos a dualidade que envolve um vulcão e um funeral. Isto seria corriqueiro em tempos onde o aparelho estatal brasileiro estava vocacionado para a tortura se a questão não envolvesse pai e filho. Por dez dias o filho, soldado, levava e buscava, o pai, tido como subversivo, para as sessões de surra pedagógica. E todos no 52 BIS sabiam disso, todos sem exceção.
Quando ouvi aquele ex-soldado relatar tal história na frente de outros 50 ex-soldados senti todas as dores do mundo, suas crueldades e virtudes. Vejo aquele menino de 19 anos e 45 quilos, fardado, metralhadora em punho caminhando pelo calvário das gigantescas extensões daquele quartel. Penso em seu silêncio apenas rompido pelo passo do coturno e pelo sofrimento engolindo sangue do torturado, também silencioso. E assim iam pai e filho. E nestes mais de 35 anos só trocaram palavras apenas uma única vez, num velório em Belém do Pará.
Nunca mais vou esquecer essa imagem, não quero, não posso. Não é um direito que gozo sob pena de esquecer quem sou e de onde vim. Ao longo de 39 anos já vi e senti muitas coisas duras. Nasci numa prisão porque minha mãe fora presa grávida e barbaramente torturada comigo no ventre. Vi um pai assassinado pelas balas do latifúndio aos 15 anos de idade cujo organizador do crime, James Vita Lopes, atuou na Oban e SNI. Vi muitos companheiros perseguidos e mortos. Há muitos anos que meu couro endureceu e isso até tem me ajudado a continuar na luta e escrever este artigo nesta alta madrugada de segunda-feira em São Domingos do Araguaia. O fato é que aquele menino de 19 anos de 1974 quer falar e sua virtude, sua generosidade, é querer educar toda uma geração de outros meninos e isso será determinante para a felicidade espiritual do povo brasileiro. É por isso que a causa humana é inexorável tal qual a primavera do poeta comunista Pablo Neruda.
Mas outros pedem passagem e também querem falar e falar muito.
Um dos poucos soldados incorporados em Belém descreve a presença do DOI, cujos agentes chamavam de “Chefe” para o então Capitão Luchini. Queria ser barbeiro, aprender uma profissão, mas começou a se decepcionar quando um colega, também soldado, que prestava a guarda de um Osvaldão já morto foi levado para servir de relaxamento para os pára-quedistas oriundos do Rio de Janeiro, tropa de elite decisiva para debelar o movimento insurgente do Araguaia.
O aperitivo de entrada para a paranóica festa realizada quando do tombamento do comandante negro das matas foi dar choques e pancadas nos testículos do amigo daquele que ora narramos.
A ilusão com o quartel e com as tesouras encerrou-se, em definitivo, quando um Coronel, oficial do Estado-Maior, requisitou-lhe a ir até a residência para cortar o cabelo. Ao final do trabalho tal Coronel chama-lhe ao banheiro para ver como havia ficado o corte e o soldado-barbeiro se vê obrigado a manter relações sexuais com o oficial. Se aquele moço não trava a luta teria sido estuprado em plena Vila Militar.
Há um amontoado de nomes covardes na memória daqueles ex-meninos e os mais citados são sempre os Sargentos Anselmo, Hélio e Trajano e o Tenente Elton. Se o Tenente obrigava-os a tomar sangue de boi, o Sargento Trajano é o mais detestado.
Não era apenas detestado pelos maus-tratos dados aos subordinados, mas, sobretudo porque quando entrava na mata, em operações que chegavam a durar 15 dias ininterruptos revelava desmedida covardia e literalmente cagava nas calças de medo de guerrilheiro. Tal pavor fez com que obrigasse uma tropa toda de 14 homens fuzilar 3 castanheiros que saíam do banho de igarapé num final de tarde num mês perdido de 1974 num ponto remoto, de mata fechada em São João do Araguaia/Pa. Dezenas de camponeses, relatam, foram mortos desta maneira e outras dezenas sob tortura, não importava se em ambientes militares ou na mata fechada.
Mas não encerro por aí com o Sargento Trajano.
Depois de ver três castanheiros mortos, o antes covarde e guerrilheirofóbico Sargento Trajano retoma com suas vestes de brutamontes dos tempos de instrução no 52 BIS, quando poderia ser percebido pelo Estado-Maior como o mais abnegado dos patriotas.
Tal transformação foi tão imediata como o cheiro de pólvora depois de uma rajada de metralha. Agora novamente o Trajano era o machão. E logo a tropa encontrou com as famílias e colegas de trabalho dos que lá atrás foram deixados insepultos.
Segundo o relato que colhi, as mulheres velhas e novas tremiam, e os homens, velhos e novos, estavam todos urinados. As crianças choravam muito. Não poderia haver melhor palco para o Sargento. Não poderia haver melhor sinfonia para o Sargento. Aí é que ele se soltava, rajada para cima, cano incandescente de FAL na costa de um e de outro. Mas se aparecesse a Dina era capaz do dantesco e festivo Sargento Trajano fustigar suas próprias entranhas.
Todos eles querem falar, deixemo-nos, pois.
Passaram suas vidas com os lobos rondando seus telhados, humanidades e consciências. Um deles sente, por todos os malditos dias, o sangue de uma cabeça cortada percorrendo suas costas e seus caminhos e quer se libertar para resgatar toda uma vida que não foi e que nunca poderá ser se não disser o que sabe, o que viu, o que sente.
Parecem ter a altivez de compreender que só podem fazer isso se estiverem cerrando fileiras para localizar outros meninos que estão sepultados pela região do Araguaia. Neste caso ambos os meninos foram vitimas do mesmo algoz. É por isso que secretamente, naquelas noites sombrias da década de 1970 os meninos não-guerrilheiros levavam aos meninos-insurgentes, escondidos, cigarros ou comida. O Eduardo, guerrilheiro sobrevivente do Araguaia, não me deixa mentir.
Muitos irão se incomodar quando as vozes forem amplificadas.
O que me preocupa é que isso venha de setores que dizem defender a civilizatória causa do direito à memória e verdade. Para alguns, até o camponês que se viu obrigado a ser rastejador depois das mais bestiais torturas, se equivale ao General Hugo de Abreu. Aqui, a vitima se transforma em vilão e, os que verdadeiramente têm as mãos sujas de sangue aplaudem a confusão e vão se perpetuando na decrépita condição que a covardia enseja a suas velhices.
Espero que o que vamos escutar daqui para frente dos ex-soldados possa ajudar nas mentalidades daqueles que estão nos quartéis, de todos os seus generais, que a defesa da pátria é também de verdade histórica e tenham em Pery Beviláqua um belo exemplo à ser seguido.
E que não ousem os recalcitrantes de plantão tentar silenciar as vozes que se libertam porque até as mais diminutas pedras do Araguaia criarão ouvidos tal o ensurdecedor barulho que só a consciência avançada é capaz de produzir.
Espero que o que vamos escutar daqui para frente dos ex-soldados possa ajudar nas mentalidades daqueles que estão nos quartéis, de todos os seus generais, que a defesa da pátria é também de verdade histórica e tenham em Pery Beviláqua um belo exemplo à ser seguido.
E que não ousem os recalcitrantes de plantão tentar silenciar as vozes que se libertam porque até as mais diminutas pedras do Araguaia criarão ouvidos tal o ensurdecedor barulho que só a consciência avançada é capaz de produzir.
A Comissão Nacional da Verdade, de profunda dimensão democrática, cuja tarefa é proteger o futuro para uma nova geração de meninos só poderá exitar se revelar os punhais e as tramas dos lobos de 31 de Março de 1964.
Blog do Paulo Fonteles Filho: http://paulofontelesfilho.blogspot.com/
Foto: Carta Maior http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16353&editoria_id=5
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